Parte 1: O elogio da cor
Era o dia último de um encontro de escritores africanos em São Paulo. Os debates tinham sido em torno da tacanhez da colonização, do inumano apartheid, da imagem da África no mundo e da literatura. Por vezes, a lástima era mesmo o público, para quem o continente era tão menos popular do que a Marte de Isaac Azimov. Como vaticinava a programação, o último evento do dia seria a apresentação de uma cantora angolana. Conhecia alguma música de Angola, mas nunca tinha ouvido Jéssica Areias. A voz da artista, que era afinadíssima, invadiu-me suave e fresca como alfaces colhidas à alvorada. Segundos a seguir, a Fabiana, uma amiga brasileira, deu um salto desajeitado e abandonou o anfiteatro. No final, no cocktail, encontrei-a escondida num sofá azul, de três lugares. Quando me viu, ela entornou umas lágrimas miúdas e resmungou, com desgosto: Ela é branca! Como uma branca fecha um encontro de escritores africanos? Eu virei-me sem saber o que dizer. Ela era negra e brasileira. Detive-me depois de dois passos. Fabiana costumava imaginar que a África era a sua mátria. Pensei: África já não é só negra.
Walter Rodney, no seu livro “Como a Europa Subdesenvolveu a África”, faz uma “folha de balanço do Colonialismo”. Eu costumo questionar-me se, depois de centenas de anos de contacto explorador e escravocrata e, cerca de 70 de ocupação efectiva e colonial, terá sobrado um pedaço da África Original, “não contaminada”. Existe a tal África “dos tambores e da percussão”? Ou, posto de outro modo – já que eu gosto de fazer questões – Quem somos nós? Somos reais enquanto africanos? Continuamos originais? Até que ponto, a ideia de África, é uma construção exterior? Gosto de acreditar que nenhum país é “original”. Mas, sendo africano, sou impulsionado a crer que a África foi o continente que mais sofreu nas mãos do imperialismo capitalista europeu. Desde o traçado das fronteiras, na Conferência de Berlim, ao “apoderamento das instituições sociais” de África, o continente não fez as suas próprias escolhas.
Então, quem somos, actualmente? No Malawi, em 2015, conheci um Victor Kazako (com “K” e “Z”). Em Moçambique, diz-se, por exemplo, que Robert Mugabe era de origem moçambicana. O Mfecane, movimento migratório da África do Sul, responsável pelo estabelecimento do Império de Gaza, faz, da África Austral “um só povo”, a condizer aqui com a ideia de Achille Mbembe, de uma África pré-colonial sem fronteiras, ou seja, de fronteiras “permeáveis”. Mas nós somos, hoje, nacionais pelas fronteiras determinadas pelos regimes coloniais.
Antes que eu enverede exclusivamente pelo viés histórico, quero contar-vos um outro episódio. Em 2015, eu tinha um livro a sair pela editorial brasileira Kapulana. A responsável, Rosana Weg, visitou Moçambique no final daquele ano. Em entrevista a José dos Remédios – e, talvez porque o meu nome já é aportuguesado – ela caracterizou o meu livro “Viagem pelo mundo num grão de pólen” como “Não é um livro africano, mas há muitas referências sobre África, pois a cultura africana não é tratada directamente… não há isso de cultura moçambicana”. Mas isso não é verdade. Eu costumo dizer que eu já sou africano e não preciso de provar isso para ninguém.
A África, este “continente sem frio”, como definido pelos gregos, é tão multicultural como qualquer nação. Ele não é homogéneo e muito menos fechado. No caso de Moçambique, por exemplo, a presença e influência árabe e chinesa é anterior aos contactos com Portugal. Em “Lutar por Moçambique”, Eduardo Mondlane escreve que os comerciantes portugueses resolveram ocupar o território porque tiveram inveja das alianças e das riquezas dos sultanatos e xeicados que se estendiam entre Ilha de Moçambique e Sofala. Está claro que, para Moçambique em especial, o colonialismo desempenhou um papel duro, por exemplo, “importando estrangeiros” que administrariam as companhias majestáticas. No período pós-independência, a coabitação e coexistência multicultural seria continuada com a “política dos cooperantes”, como sublinha Orlando Nipassa, recursos humanos estrangeiros integrados na máquina administrativa para suprir falta de quadros devido a fuga dos portugueses.
Seria ingénuo aceitar que a África, no geral, seguiu o modelo “melthing pot” dos EUA ou Brasil, mas negar a miscigenação é, também, um pecado mortal. No livro “O beijo na parede”, do escritor brasileiro Jerferson Tenório, há um diálogo interessante onde se conclui que “A África é em todo o lugar”, o que quer dizer, recuperando e distorcendo Achille Mbembe, há uma universalização da condição do africano. Na Bahia, o poeta Vanderlei Moraes Filho, antes de beber a sua cerveja, deu o primeiro gole a Ogum, seu deus protector. Eu pensei: isso é muito africano.
A globalização, nos termos de Friedman, tornou o mundo mais raso, mais flat. Há a contaminação dos espaços e das culturas, há a criação de novas fronteiras (as virtuais) e de uma identidade cosmopolita. As pessoas tendem a ser o que querem ser. Em relação às identidades, isso representará algum risco? Talvez. Como um cromossoma mutante, a cultura estará sempre exposta ao ambiente. Eu temo o que o Eduardo Galeano, n’ “O Livro dos abraços”, chama de “cultura do macaco e do papagaio”, cujas características são a importação e a impostação. Eu, infelizmente, não acredito na globalização.
Parte 2: Eu vejo a Lua mas não vejo a China
Há uma anedota para explicar este mote. Perguntaram a um certo idiota: entre a China e a lua, o que fica mais longe? O idiota respondeu: a China, porque, da minha casa, eu vejo a lua. Walter Rodney, em “Como a Europa Subdesenvolveu a África”, explica o problema de mobilidade, dentro dos países africanos, nos seguintes moldes: o colonialismo não construiu vias de acesso para o africano ir visitar o seu parente, o seu interesse foi, a priori, o comércio com o interland e a ligação com a Metrópole. O ano é 2019. Ainda hoje, mais de metade das estradas e vias-férreas de Moçambique saem da costa para o interior, e é bem mais barato voar para Lisboa do que voar para Pemba.
O camaronês Achille Mbembe, uma espécie de autoridade neste assunto, diz que a colonização, ao traçar as fronteiras do continente, negou aos africanos o direito de livre circulação e “se tornou a pré-condição para a exploração do nosso trabalho”. Manter as pessoas fixas e evitar o movimento é tendência dos estados ainda hoje. Os países criam acordos preferenciais e o visto pode ser dispensável ou a permanência, prolongada.
O problema da mobilidade pode ser entendida em duas vertentes, liberdade e segurança. A liberdade de movimentação está associada com a necessidade de o ser humano de crescer, de transformar-se e assimilar experiências. Há um mundo fora do nosso mundo e queremos apreendê-lo. Mas há um preço. Há um preço económico e há um preço político. Em relação à segurança, sob o signo da soberania, os estados não gostam do “movimento excessivo” e livre. Então, a segurança obviamente reduzirá a universalização das pessoas, criando limites.
Para os pro-globalização, a globalização acelerou a mobilidade de pessoas, bens e conhecimento pelo mundo. Verdade? Não. A globalização está a serviço do novo espírito do capitalismo, das corporações transnacionais e do consumeirismo. Apenas as nações fortes, em termos de hard e soft-power, conseguem tirar proveito real desse fluxo. Os países periféricos, grande parte ex-colónias, vão jogando a cabra-cega, subservientes à voz dos outros. Se é mais fácil e barato ir a São Paulo do que ir a Lagos, está claro que o mundo não é semi-globalizado, e não globalizado.
Para encerrar, gostaria de recuperar a argumentação sobre a liberdade e a segurança. Deixa-me falar-vos um pouco sobre a China. Durante os anos em que vivi na China, não fui um só dia abordado pela polícia, nem sequer em Pequim, Xangai ou ShenZhen. Sempre pensei que isso foi possível porque o sistema de migração do país é eficaz e de nenhum modo eu representava uma ameaça. Em 2018, 43 nigerianos foram presos pelas autoridades chinesas. Eles usavam passaportes de Moçambique. Diz-se que o passaporte moçambicano é limpo, confiável (ou a desconfiança surgiu pelo facto de serem nigerianos?). Há o outro lado da moeda. A China usa, desde a administração Mao, o hukou, uma variante do bilhete de identidade. O hukou não apenas serve para o registo domiciliar como também para forçar os indivíduos a ficarem nas suas zonas de origem. O portador do hukou tem acesso a melhores serviços e bens públicos no seu local de emissão; portadores de um hukou de outras regiões, geralmente pagam mais pelos serviços e enfrentam, por exemplo, injustiças laborais como diferenças nos salários para qualificações e cargos iguais. A mudança do hukou é possível, mas é caro. O hukou cria uma sociedade dualista e inibe os fluxos migratórios. Ele é usado, oficialmente, para controlar o rácio dos crimes e evitar o surgimento de favelas nas grandes cidades.
Por fim, se África é o berço da humanidade, então se deve à mobilidade a ocupação de outras partes da terra e o desenvolvimento de outras sociedades e culturas. A mobilidade é própria dos homens e das suas relações. Assim, a xenofobia que caracteriza a África do Sul (“Nação arco-íris”?), desde 1994, é uma ameaça ao direito pós-colonial de circular livremente pela África.
Comunicação apresentada na 3ª edição do Colóquio Internacional Maputo Fast Forward: “Identidade & Mobilidade no séc. XXI”, em Maputo, no dia 10 Outubro de 2019
Fonte: Literatas
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